domingo, 12 de agosto de 2012

AGOsTO

O moleque se dirige ao Mineirão. Rindo à toa. Em sua mente passavam imagens de Tostão e Dirceu Lopes arregagaçando com o Santos de Pelé. Tinham ganho, no recente Mineirão, por 6 a 2, impondo a maior humilhação na carreira de Pelé. No jogo de volta, arrebentaram o Santos em pleno Pacaembu por 3 a 2. Alguns diziam que Tostão era melhor que Pelé. O moleque mostrava os dentes brancos em plena confiança no escrete celeste. Afinal, estava indo para um jogo de campeonato mineiro contra um time da roça. "Cumprindo tabela" era o que o moleque pensava. Não tinha ingresso, mas sabia que por sua baixa estatura e sua malandragem, entraria facilmente no estádio. No meio da confusão, num toque de alguns segundos, já estava na geral. Gargalhou para si mesmo, pensando em como era esperto. Posicionou-se entre os adeptos e aguardou o apito inicial. O time interiorano massacrou o Cruzeiro. Meteu vários gols. O moleque não queria acreditar. Quando o árbitro apitou o final do jogo, a criança sentiu seu corpo tremer. Era uma sensação que evitava entre outros moleques, mas ali, entre desconhecidos, deixou aflorar. Chorou. A mistura de dor e tristeza faziam com que as lágrimas brotassem e escorressem sem parar. Ele não sabia o que fazer. Colocava a camisa celeste no rosto e chorava. Tentava camuflar sua dor, escondia o rosto e num tormento inerente, não conseguia parar de lacrimejar fortemente. Ele tinha ouvido falar de ataques cardíacos em sua família e na sua inocência infantil, achou que poderia estar tendo um piripaque.
Caminhava pelas ruas do Barro Preto e não conseguia parar de chorar. Sentiu-se ridiculamente impotente ao passar pelos transeuntes naquele estado de cachoeira lacrimejante. Chegou em casa e fechou a porta do quarto. Felizmente, seus dois irmãos não estavam em casa. Continuou o chororô por largas horas, deitado na cama.
Acordou no dia seguinte e pensou na verdade irreal que escarrava em sua cara. Pegou o jornal de seu pai e viu que não tinha sido um sonho. Um time caipira tinha destruído o Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes, Raul Plassmann, Piazza e outros craques. Teve que sair de casa. Sentou no passeio em frente à sua casa e tentou lembrar do acontecido, no entanto, as lágrimas não permitiam. Chorava como criança que era.
Sentiu tanta raiva de si mesmo que começou a socar o paralelepípedo. Lembrou de meter a porrada em caras muito maiores, em mergulhar no rio de Aimorés com suas correntezas traiçoeiras, em jogar bola descalço e sair trombando em todo mundo para fazer o gol da vitória. Esfregou os olhos com força e prometeu que nunca mais torceria por time nenhum. Nenhuma equipe merecia que ele sofresse tanto...
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20 anos depois, esse ex-Cruzeirense levou seu filho a um fim de semana em BH. Mostrou o Barro Preto onde jogou muita bola, comentou que trocou passes com Tostão e apontou os mercados onde roubava bolinhas de ping-pong. Juntos, atravessaram a rua (o filho se sentiu temoroso ao ver tantos carros, mas confiou no pai) e entraram no cinema. Seu filho, nascido em cidade interiorana, não sabia o que significava a escuridão de uma sala de cinema (o pai insistia que ele já tinha ido ao cinema para ver ET, mas o filho não se lembrava. Preferiu nem mencionar que quando o filho era bebê o levou para ver Superman e ele chorou tanto que teve que sair do cinema.). A criança disse ao pai que precisava ir ao banheiro. O filho voltou e sentou-se ao lado do progenitor.
Na tela, um adolescente conversava com um velho sobre viagem no tempo. Era difícil ler as legendas rapidamente, mas o filho se adaptou velozmente e conseguiu pegar o contexto de cada cena. 88 milhas por hora. Essa era a velocidade necessária para viajar no tempo segundo o filme. Inconscientemente, Michael J. Fox tinha se tornado seu ídolo.
No dia seguinte, o pai atravessou a rua de mãos dadas com o filho. Entravam novamente naquele paraíso escuro chamado cinema. Os Goonies resolviam todas as situações com engenhosidade. O filho, que até então pensava em ser agrônomo, refutou tudo que desejou anteriormente e ansejou a possibilidade de trabalhar com a sétima arte. Sem saber, ao contrário do pai no fatídico jogo do Cruzeiro, expurgou todas as suas emoções e se sentiu livre em forma de sentimento.
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Menos de uma década depois, o pai disse que o filho tinha que ver um filme. Ele próprio tinha ficado impressionado com o grandiosismo épico de uma obra dirigida por um ator. Os dois foram para o escurinho do cinema e o filho concordou com o patriarca: aquele filme sobre um americano que se revoltava contra a própria pátria para proteger os indios era maravilhoso. ***Muitos anos depois, o meu professor ídolo, Foster Hirsch, disse que Danças com Lobos de Kevin Costner era um filme de amor... de Kevin Costner por ele mesmo. Sim, o egocentrismo exacerbado estava lá, mas não deixou de ser um grande filme/blockbuster.***
Ali, o filho declarou de uma vez por todas que queria viver da emoção e essa emoção estava no cinema.
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2009 - Seu filho era Atleticano. Como tinha "decidido" não torcer mais por time nenhum, o tio materno de seu filho tinha influenciado e feito o garoto torcer para o Galo. Sentindo-se sozinho e vendo o Cruzeiro na final da Libertadores, decidiu comprar uma passagem para BH. Aterrisou na capital mineira, foi para a casa de sua mãe e sem dizer nada a ninguém, abandonou sua mala e foi para a rua. Seu destino era o Mineirão. Chegou ao estádio e comprou o ingresso na mão do primeiro cambista que apareceu em sua frente. Foda-se o preço, ele pensou.
Entrou e reviveu todos aqueles momentos de grandeza do Cruzeiro. Sorriu como quando era criança. Cruzeiro 1 x Estudiantes da Argentina 0. Estava encaminhado. Vibrou no meio de uma porrada de desconhecidos. Aí apareceu um sujeito marrento, argentino, chamado Veron. O Estudiantes vira o jogo e leva a Libertadores. Em pleno Mineirão, o pai pensava. Raiva. Chorou. Caceta! Eu tinha prometido não torcer e sofrer por mais time nenhum, ele pensou. Voltou para a casa de sua mãe revoltado e sem dizer nada a ninguém, pegou o avião de volta ao Espírito Santo. Dessa vez eu juro, nunca mais torço por time nenhum, ele pensou em meio às nuvens.
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Olimpíadas 2012 - O Ney Franco abandona a Seleção brasileira que ele montou, treinou e competiu a favor do Mano Menezes. Mais uma vez não conseguimos ganhar a maldita medalha de ouro olímpica. O filho lembra que seu pai deu aulas à Ney Franco e sente-se chateado pelas burradas do Mano. Segue o jogo de vôlei feminino e ganhamos o Ouro. O filho toca o terror no boteco. Grita, torce e incendeia todos os clientes. Sorri. Tem que torcer e apoiar, ele pensa. Lembra novamente do pai que finge suprimir todas as suas emoções e não torcer por time algum. Hesita em ligar e resolve escrever em seu blog o que pensa. Seu pai tem agora 60 anos. Nunca é tarde para mudar a mentalidade de que homem não chora. Ele lacrimeja ao finalizar o texto e tem a certeza que emocionará seu pai também.

Feliz dia dos pais, Márcio Leite.

PS- Chorei muito ficcionalizando suas aventuras de moleque assistindo ao Tostão. A emoção não é vergonha e o choro é nobre. Te amo muito, pai (prova disso é colocar o símbolo do Cruzeiro no meu blog). Muitos beijos.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Arrogantes egoístas têm salvação

Quando saí do Cine Jóia após ver Heleno, me toquei que a úlitma vez que havia estado naquela sala tinha sido em 2003 para ver O Homem do Ano. Ambos os filmes foram dirigidos por José Henrique Fonseca. Essa coincidência e o fato de ter ficado abalado com a história do craque do Botafogo me fizeram caminhar pelas ruas de Copacabana.
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A ARROGÂNCIA. Heleno de Freitas era um craque. Era idolatrado pela torcida do Botafogo e muitos o consideram um dos melhores jogadores brasileiros de sempre. As mulheres o amavam já que além de ídolo, era bonito e galanteador. O jogador se considerava melhor que todos, acima do bem e do mal. Sua arrogância o levou ao isolamento. Seus companheiros de time não o aceitavam. Os técnicos o boicotavam.  A imprensa o sacaneava. Quanto mais criticado, mais Heleno se inflava, se achando o dono do mundo. Assim como o Botafogo, era uma estrela solitária.
Não se tratou da sífilis que o corroía achando que era imortal. Cheirava éter e se embriagava na tentativa de fugir. Se entregava a encontros sexuais constantes na tentativa de buscar afeto e compreensão.
Sempre fui perna de pau, mas me identifiquei com a história do craque. Justamente em 2003, no ano que assisti ao outro filme de José Fonseca, me encontrava em situação semelhante. Um recém formado cineasta que se hospedou no Rio de Janeiro por 15 dias. Tinha mil dólares no bolso numa época que a cotação estava 3 para 1. Estava rico. Estava com meu primeiro curta debaixo do braço, indo a produtoras cariocas em busca de contatos e trabalho. Vinha duma depressão semi-profunda por já não suportar mais morar no frio de Nova York. Cheio de expectativas ouvi diversos elogios cariocas em relação ao meu filme e quanto a meu talento. Me apresentaram para dramaturgos, atores Globais, muheres sensuais. No entanto, não passava disso. A depressão voltou a se instalar. Já que não obtinha resultados profissionais na minha passagem pelo Rio, resolvi obter resultados da carne. Gastei os 3 mil reais me entorpecendo e nos braços de uma, duas e até três mulheres por noite. De dia paquerava e transava com as mulheres que conhecia na praia. À noite, saía de uma boate de strip-tease, caminhava pela podridão da Avenida Atlântica, e entrava em outra. Assim como Heleno, buscava esquecer a falta de reconhecimento pelo meu talento na putaria nossa de cada esquina. "Eu sou foda, o resto que exploda". Minha arrogância me distanciava de tudo e todos e aos poucos ia me destruindo.
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O FILME. Li uma crítica que comparava a transformação de Santoro com a de Robert Deniro em Raging Bull/Touro Indomável. Rodrigo Santoro está muito bem no filme e realmente a metamorfose de um atlético jogador em um doente debilitado pela sífilis é impressionante. Depois da excelente atuação em Bicho de Sete Cabeças e muitos filmes mais ou menos pelo caminho, o ator volta a entregar uma grande interpretação.
A comparação com Touro Indomável só pode acontecer no campo da interpretação, porque ao contrário do filme do diretor Martin Scorsese, Heleno não mostra o jogador em ação. Deve ter no máximo cinco minutos de bola rolando durante a projeção. Por quê? Foi falta de dinheiro? Se sim, porque não esperaram e captaram mais grana? Foi uma opção do roteiro? Se sim, porque fazer um filme sobre um dos grandes do futebol sem mostrá-lo em campo? Scorsese explorou ao máximo as lutas de boxe para fazer uma metáfora da vida pessoal de Jake Lamotta, vivido por Deniro. Acho que Heleno perdeu uma grande oportunidade de fazer o mesmo (o jogador sonhava em jogar no Maracanã e no último jogo de sua carreira, único jogo que lá fez, foi expulso por aplicar um carrinho violento. Isso nem é mencionado no filme. Suas peripécias em campo diziam muito de quem ele era fora dele e isso não foi explorado). É um bom filme, mas poderia ser uma obra-prima, o primeiro e único grande filme sobre futebol.
Tenho que tirar o chapéu para o diretor de fotografia Walter Carvalho. Já critiquei muito suas opções estéticas no passado, mas de preto e branco, ele entende muito. Terra Estrangeira, Crime Delicado e Heleno estão aí para não me deixar mentir. Acho que é seu melhor trabalho. 
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O EGOÍSMO. O egocentrismo de Heleno não permitia que visse ou se importasse com ninguém a não ser consigo mesmo. Esnobava a mulher, criticava os amigos e desprezava o filho. O egoísmo de Heleno fazia com que só quisesse receber, mas nunca dar. Queria o amor, a glória, os elogios, mas era incapaz de retribuir.
Sempre me perguntam porque o meu casamento acabou. Respondo que é uma pergunta muito complexa e mudo de assunto. Na verdade, a resposta é simples: egoísmo. Quis tudo para mim, mas nunca quis retribuir. Nenhum relacionamento, seja ele amoroso ou não, resiste à falta da troca. Ouço pessoas dizendo que não têm tempo para o amor porque estão focadas em suas carreiras. Ouço pessoas dizendo que não têm tempo para se encontrar com os amigos porque querem ficar em casa com a namorada. Ouço pessoas lamentando seus problemas mas que não querem escutar o problema dos outros. Revelo meus sentimentos mais profundos e do outro lado, parece que não se importam.
Estou sem paciência para esse mundo individualista em que cada um só foca em si mesmo. Estou me afastando de pessoas assim justamente para não permanecer assim. O egoísmo está me sufocando e destruindo tudo à minha volta. Quero trocar, retribuir. É difícil, mas não é impossível (As Neves do Kilimandjaro, ainda em cartaz, é um ótimo filme sobre a realidade do altruísmo).
Volto ao tema recorrente deste blog: o medo. A arrogância e o egoísmo são muitas vezes uma ramificação do temor que temos de nos entregar aos outros. A arrogância é uma máscara para a insegurança. O egoísmo é uma busca pelo isolamento no intuito de não se ferir. "Ninguém quer ficar triste", ela disse. Mas como saberemos o que é a felicidade sem a tristeza? Sem a porrada, nunca saberemos o que é o sangue. Me proponho ao mergulho. Se tiver correnteza, eu me viro depois. Quero viver sem medo.
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A caminhada de Copacabana até o escritório (a.k.a. Bar Altas Horas) foi longa, mas proveitosa. Pedi uma cerveja e prometi que seria a única. Não iria me entorpecer para tentar apagar minha arrogante e egoísta depressão. O celular toca. Uma amiga, com outras amigas, me chama para uma festa numa cobertura. Deixei a promessa para o dia seguinte.

sábado, 19 de maio de 2012

A FRieza da ObjetiviDADE

O 3D fez com que voltássemos à sensação do passado. Há 60 anos atrás se o espectador perdesse um filme que passou no cinema, ele teria a incerteza se algum dia conseguiria ver aquela "fita". Com muita sorte, caso o filme fosse um grande sucesso, talvez reprisassem numa matinê no próximo ano. Eu me sinto assim em relação ao 3D. Se o filme sair de cartaz, não vou ter mais aquela sensação única (quem viu Avatar na televisão, sabe o que eu estou falando).
Por essa razão tive que viajar para fora do Rio para ver A invenção de Hugo Cabret em 3D. Tive que ir até à Barra da Tijuca. Na Miami carioca, no New York City Center, na sala De Lux do Multiplex, pela bagatela de 25 reais (meia entrada). Luxos que só a aristocracia da Barra poderia ter a criatividade de criar.
A abertura é fantástica. A câmera passeia digitalmente pela Gare du Nord entre passageiros e trens. A fumaça das locomotivas e a neve do inverno Parisiense parecem passar constantemente pelo rosto do espectador. Realmente, Hugo é o filme onde o 3D foi mais bem aplicado até hoje. No entanto, como um leigo da sétima arte, me perguntei: e daí? Por diversas vezes me senti entediado. A história do orfão, que sonha em consertar um autômato que escreverá uma mensagem de seu falecido pai, não me encantou.
O trânsito de uma hora até em casa (viajar para a Barra não é mole) me deu tempo para questionar meus sentimentos. Achei o filme infantil e previsível por não mais me permitir ser ingênuo e lúdico? Teriam os problemas profissionais e pessoais do dia em questão influenciado o meu mau humor em relação ao filme? Teria me tornado uma pessoa fria?
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Compenetrado no sofá, liam-me um trabalho para a faculdade. Dentro da minha loucura e dentro do possível, tentava prestar o máximo de atenção. Apesar de entender o assunto que me era ditado, não conseguiria me lembrar agora sobre o que se tratava. A culpa era de uma frase lida logo no início. Algo sobre a subjetividade da imagem. O orador do trabalho, tinha visto meus três curtas metragens, e gostado mais do primeiro que realizei, Out of the Prohibition Era. Criei uma empatia imediata por essa preferência já que era também o meu filme preferido. A maioria das pessoas que já assistiram aos meus trabalhos de ficção, costumam preferir Ferocidade, o meu último filme. Prohibition é um filme enquadrado de forma pouco convencional, abusa da falta de foco, tem uma narrativa fragmentada e pouco explicativa. A estreia de um cineasta ainda embrenhado na demência de contar uma história. Ferocidade é um filme linear, crú, racional, extremamente suportado pela técnica cinematográfica adquirida ao longo dos anos. Prohibition é subjetivo. Ferocidade é objetivo.
Ao chegar em casa, procurei o livro A Imagem-Tempo do filósofo Gilles Deleuze. Rapidamente encontrei o trecho que procurava: "Quanto à distinção entre o subjetivo e objetivo, ela também tende a perder a importância, à medida que a situação ótica ou a descrição visual substituem a ação motora. Pois acabamos caindo num princípio de indeterminabilidade ou indiscernibilidade: não se sabe mais o que é imaginário ou real, físico ou mental na situação, não que sejam confundidos, mas porque não é preciso saber, e nem mesmo há lugar para a pergunta. É como se o real e o imaginário corressem um atrás do outro, se refletissem um no outro, em torno de um ponto de indiscernibilidade."
Era um jovem estudante de cinema com um olhar subjetivo e me tornei um artista com mais de 30 anos com visão objetiva. Meu convívio com o autor do trabalho de faculdade me fez enxergar que tinha me afastado do meu lado mais maluco para criar: a subjetividade.
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As pessoas costumam se referir a pontos chaves do filme "que não entenderam". Sobre aquela imagem "que não fez sentido". Sobre aquele filme do David Lynch sem pé nem cabeça. Talvez por ser uma forma de arte mais antiga, na pintura isso já não acontece com tamanha frequência. Não vejo uma pessoa apontando para um Kandinsky e dizendo que não entendeu. Ela gosta ou não. Fica ali admirando ou vai embora. A apreciação é mais pura.
Na sétima arte, seus espectadores vivem em busca de respostas e acontecimentos lógicos. Feliz daquele que acorda e não questiona o significado de seu sonho. Ele simplesmente aceita a falta de coerência do seu subconsciente.
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Sempre busquei na subjetividade uma forma de me conectar e construir uma realidade. O entrelaçamento do real e do imaginário sempre foi minha meta. Analisando minha condição atual enquanto artista, me assustei ao pensar nessa frieza da minha vida pessoal. Busco um imediatismo nas minhas paixões e se não são correspondidas, corto o contato. Creio que a rejeição da vida está me tornando duro, intransigente. Em suma: frio. Talvez por isso ame tanto o calor do sol carioca. Preciso de calor. Tenho necessidade de me aquecer constantemente para derreter o gelo que se instala nas minhas entranhas.
Tomei uma atitude hoje que poderia ser interpretada como um fechar de porta. Algo que não tem mais volta. Porém, a porta continua aberta, mesma que seja uma fresta. Em breve passarei por ela novamente, de preferência com minha subjetividade recuperada. Tudo vai depender do POnto de Vista.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Além da CAntAdA

Depois de muito trabalho, buscava o escurinho do cinema. Queria prestigiar o cinema tupiniquim vendo Heleno ou Xingu, mas a distância e a preguiça me impediram. Fui ao cinema perto de casa mesmo. Fui assistir a um filme que a sinopse havia me intrigado: Cairo 678. O filme conta a história de mulheres que sofrem assédio sexual diariamente pelas ruas do Cairo, Egito. O título da película se refere a uma linha de ônibus que devido a sua grande lotação, permite que homens fiquem com as mãos bobas no coletivo. Uma mulher decide dar um basta ao assédio diário através da violência.
Lembrei da primeira vez que vi o vagão exclusivo para mulheres no Metrô do Rio. Dentro de um horário X, somente mulheres podem entrar nesse vagão segregado. Achei que outras minorias (engraçado falar da mulher como minoria no Brasil, já que são maioria de acordo com o censo) deveriam também reivindicar seus respectivos vagões. Um vagão para preto não ser chamado de crioulo. Um vagão para os homossexuais não tomarem porrada por serem viados. Talvez até, um vagão para os judeus não serem chamados de pão-duros. O segredo da convivência estaria na proibição ou na fiscalização? Na segregação ou na educação?
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Enquanto garçom em Nova York, trabalhei em dois restaurantes em bairros gays. Foi importantíssimo para extinguir minha homofobia oriunda da "tradicional família mineira". Me acostumei a ver dois neguinhos se pegando. Finalmente, descobri que estava curado desse preconceito quando vi dois caras andando de mãos dadas. A pergunta que expurgou meu preconceito: O que eu tenho a ver com a vida privada desses barbados?
Outra lição caminhando por Chelsea e West Village foi a compreensão do status da mulher cantada e assediada pelas ruas. Eu levava pelo menos duas cantadas por noite ao caminhar para o metrô (e olha que eram só quatro quarteirões). Eu, como uma donzela de cuecas, imitava as mulheres, ignorava a gracinha e seguia meu caminho.
Muito se comenta sobre a tal promiscuidade dos homossexuais e uma vez um colega de restaurante, que era gay, me disse: "Viado é promíscuo porque é homem e não porque é viado". Faz sentido.
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Cairo 678 é uma viagem à outro patamar de cultura. Mulheres que ao colocar o pé na rua, sofrem agressões sexuais, verbais, físicas. Um local onde pegar um ônibus pode ser uma viagem desagradável e intrusiva. É a introspecção de nossa ignorância de país "democrático". Uma estratosfera em que a mulher não ocupa qualquer espaço de importância na sociedade.
Independente do filme se arrastar, senti uma lufada de conhecimento ao enxergar diferenças tão exdrúxulas no mesmo planeta. Um estudo antropológico do Egito, cultura que já foi considerada uma das mais avançadas do período pré-Cristo.
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Saio do cinema. Acendo um cigarro e caminho o quarteirão até meu prédio. Um cara bombado passa por mim e sussura: "Delícia".
Acabou-se o conceito da "bicha" magra e desmunhecada. O cara era um armário. Continuei caminhando. Cantada: o primeiro escalão do assédio. O lado feminino veio à tona.
Entro no prédio e o porteiro cumprimenta: "Boa noite, Doutor." Não gosto que me chamem de doutor, mas nesse dia foi bom. Ser mulher ou gay deve ser bem complicado.

domingo, 15 de abril de 2012

Novamente a palavra MeDo se instala...


Após um soberbo passeio de moto no sábado, reúno as almofadas e estico os membros no sofá. Vai começar Drive de Nicolas Winding Refn. A vibe anos 80 invade minha sala numa sequência quase sem diálogos de uma fuga pós-roubo. Du Rififi chez les hommes vem à memória com sua famosa sequência de assalto a banco que dura 30 minutos sem uma única palavra ser emitida. De repente, os créditos de abertura. Música alta, retrô porém moderna, enquanto os créditos (Rosa pink) surgem no ecrã. Recordei Thief, o primeiro filme de Michael Mann, que também abusou de sequências de assalto sem diálogos e da trilha eletrônica dos Tangerine Dream. A música usada adequadamente no celulóide é um prazer inenarrável. Que abertura. Que porrada.
Comecei a compreender o porquê da euforia de vários cinéfilos em relação ao filme e ao prêmio de melhor diretor em Cannes. Refn consegue realizar um grande desejo que tenho: associar enquadramentos interessantes, imagens que falam mais que palavras e o ritmo moderno e acelerado de Hollywood. Não estava diante de um filme de ação normal. Na verdade, nem sei se pode-se dizer que é um filme de ação. Drive é "inrotulável".
No entanto, a grande surpresa veio quando surge um prenúncio de relação amorosa na tela.
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Todos sofremos (Tristeza não tem fim, felicidade sim). Como seres racionais, penso que ainda sofremos mais. Minha gata sabe que vai tomar uma bronca ao revirar o lixo, mas o instinto fala mais alto. O prazer de roer aquele osso vindo da lixeira compensa a palmada que pode estar por vir. O mesmo não acontece conosco.
O medo da dor, do sofrimento, das lágrimas, diversas vezes, nos impede de avançar. Esse mergulho no vazio pode vir com uma extasiante recompensa em nossas mãos, mas o receio de voltar com as mãos sangrando do mesmo salto, nos trava. Congelados, deixamos o medo ditar nossa vida e não aproveitamos paixões que estão a um passo de nossos corpos.
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O driver (interpretado por Ryan Gosling) se encanta por sua vizinha, mas obviamente, não consegue se entregar. A timidez não é o foco, mas talvez o medo de machucar e se machucar. O meio que escolheu ganhar a vida é brutal e se alguém estiver ao seu redor, pode muito bem sofrer as consequências. O protagonista parece estar quase se entregando, abandonando o medo, mas eis que o marido da vizinha volta para casa.
A "nobreza" do personagem, em meio ao furacão de violência que oscila, é uma metáfora para o cavalheirismo que desapareceu desde o final do século passado. Os trovadores do passado enalteciam o amor verdadeiro, aquele que independe de se estar ao lado da amada. O amor verdadeiro faz com que desejemos o melhor para a amada mesmo que não possamos tocá-la ou vê-la. Me chamem de louco após assistirem o filme. Como posso falar de amor verdadeiro num filme tão violento e insano? Pelas escolhas do personagem. Ele não vai se envolver com a vizinha casada, mas vai tirá-la de perigo mesmo que isso lhe custe a própria vida. Ele escolheu viver o caminho que se traçou à sua frente. Então, não teve mais medo.
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"Não me envolverei mais com mulheres que trabalham demais", disse ele. "Nunca mais quero saber de homem maconheiro", disse ela. Nesse emaranhado de frases que acabam virando regras para nossas vidas, vamos perdendo a beleza do instinto, do impulso, do ímpeto. Mergulhemos de cabeça nas oportunidades que surgem em nossas vidas.

Nota: Para assistir aos berros. Infelizmente não consegui ver no cinema...

quarta-feira, 7 de março de 2012

O DoCE temPERo do Pé nA BUNda


Um filme que foi bastante exibido na minha faculdade chamava-se New York Stories. Era um filme dividido em três histórias dirigidas por Martin Scorsese, FF Coppola e Woody Allen. Estudávamos a de Scorcese (as outras duas eram descartáveis). Nick Nolte fazia um pintor que estava à beira da separação com sua namorada bem mais jovem. Ele tem que entregar uma série de quadros para uma exposição mas vive um bloqueio criativo por causa do turbilhão que está a sua vida amorosa. Quando ela leva um cara para dentro do apartamento (que ainda divide com o pintor), o relacionamento chega ao final. Sozinho no estúdio, com a relação terminada, ele começa a produzir incansavelmente e consegue cumprir o prazo e entregar os quadros para a exposição. Na vernissage, com a missão artística cumprida, ele começa a flertar com uma atraente garçonete e um novo ciclo de paixão se anuncia. O personagem necessita viver intensamente uma paixão, terminar esse relacionamento gerando muito conflito para conseguir criar.
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Após o término do meu casamento, senti um vazio incrível. Perdi não só a minha mulher como a minha melhor amiga. Fiquei duplamente orfão. Durante dois meses não olhava sequer para outras mulheres, não conseguia ver graça. Esperava que o tempo colaborasse comigo e me ajudasse a esquecer. No entanto, o tempo não estava colaborando. Resolvi usufruir do clichê máximo aconselhado para essas situações: mergulhar no trabalho. Durante um ano, abri minha produtora, escrevi curtas, desenvolvi projetos, tive várias reuniões criativas e consegui pela primeira vez, trabalhos remunerados como diretor. A dor não se esvaiu, mas pelo menos diminuiu. Neste carnaval, ao completar um ano do fim, me desmaterializei na folia momesca, me diverti como um Baco e finalmente consegui me libertar. Todo mundo leva um pé na bunda em alguma ocasião da vida e cai de boca no chão. Lembrei de Sêneca e sua imortal frase: "A honra não consiste em nunca cair, e sim em levantar cada vez que se cai."
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Quem conhece a obra de David Lynch sabe que seus filmes são sombrios, estranhos e que

podem causar mal estar. Sempre fui um de seus ardorosos seguidores e me espantei ao ler seu livro Em águas profundas. Li um autor calmo, que medita e que não se assemelha em nada a seus personagens malucos. Fiquei ainda mais espantado quando ele placidamente declara que antes de começar a meditar, vivia em conflito com sua esposa e que esse foi o período menos criativo de sua vida. Seus roteiros vêm de suas observações mundanas e não de seus conflitos internos.
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Neste ano solteiro, voltei a jogar futebol, a exercer a paciência e a criar muito (desde os tempos da faculdade que não sentia meu cérebro tão ativo). Por que temos que levar um pé na bunda para colocar a vida em ordem? A verdade é que não precisamos. Ficamos acomodados no casamento, observando a barriga crescer e a ruptura da relação nos obriga a mudar a rotina.
Estava no meu escritório (como carinhosamente chamo o boteco que frequento) com um amigo e mencionei que tinha conhecido uma mulher muito interessante e que estava disposto a começar um novo relacionamento. Ele, também um artista, declarou: "Você não pode casar agora. Sua carreira ainda não está estabelecida." Ri da afirmação e me pus a pensar... Por que um relacionamento sério é empecilho para a criação? Não é. Tudo é possível, basta ter força de vontade. Assim como no curta que estou produzindo (Mega Sena da Faro Filmes) que fala sobre lendas urbanas que supostamente não existem, em algum lugar um anão está sendo enterrado, gêmeos pretos estão nascendo e um gay se converterá em heterossexual. Tudo é possível.
Não comecei a namorar a tal mulher interessante por fatores que prefiro não expressar, mas a ligeira frustração que isso proporcionou, não me bloqueou criativamente. Assim como a felicidade de um relacionamento amoroso também não pode bloquear. Sozinho, continuo caminhando.